quinta-feira, 28 março, 2024

EXPEDIENTE | CONTATO

Entrevista: Elias Sampaio

O ex-secretário estadual de Promoção da Igualdade Racial e militante do Movimento Negro, Elias Sampaio. 

A semana da Consciência Negra, celebrada no dia 20 de novembro, é um marco para a luta e resistência do povo negro. É o momento para lembrar o que representa Zumbi dos Palmares, líder quilombola que lutou pela libertação dos escravos durante o período colonial; para falar sobre a formação histórica do Brasil e quais as consequências da escravidão para a população negra; sobre as políticas afirmativas de combate à discriminação, racismo e todas as formas de intolerância; sobre o que pode ser feito no futuro, hoje e agora.

A fim de contribuir com essas reflexões, a Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), conversou com o ex-secretário estadual de Promoção da Igualdade Racial e militante do Movimento Negro, Elias Sampaio, que comentou sobre aspectos históricos, legislativos e contemporâneos do tema. Para ele, “O Brasil nunca vai ser um país desenvolvido se ele não transformar sua sociedade, a sua economia, as suas instituições em estruturas igualitárias, que deem igualdade de oportunidade a todos”. Confira a entrevista:

SJDHDS: Como a população negra integra a formação histórica do Brasil?

Elias Sampaio: Talvez ela seja a parte mais importante da constituição da população brasileira. Eu falo assim não pra colocar a população negra num patamar superior aos demais, mas falo apenas do ponto de vista racial, no sentido de que o povo negro que veio pro Brasil escravizado e traficado tinha uma única e exclusiva utilidade naquele momento: ser mão de obra para o desenvolvimento da elite. Então, sem a população negra, o Brasil não teria talvez, sequer, desenvolvido sua economia.

Depois da escravização, os negros também trouxeram todo um legado civilizatório que deu a ascensão que o Brasil tem hoje, contrariando os pensamentos dos colonizadores da época, que achavam que somente estava sendo trazido pra cá a força de trabalho. O que veio, na verdade, foi todo um grupo populacional que, historicamente, tinha muito a contribuir com a constituição brasileira, na questão econômica, social, cultural; um legado muito mais antigo do que, por exemplo, o legado civilizatório da própria Europa.

Essas pessoas não eram escravas, elas foram escravizadas. Portanto, trouxeram, também, um legado científico, que tornou o Brasil no que é hoje. Muito do que se come, do que se bebe, fala, do se conta de histórias, veio com o povo africano. Na formação brasileira, a participação do povo negro tem um peso muito mais significativo do que aquele que é dito nos livros de história.

SJDHDS: E em relação aos feitos e consequências da Lei Áurea?

Elias Sampaio: O Movimento Negro já desmitificou essa questão. Quando essa lei foi assinada (1888), foi uma tentativa de formalizar algo que já estava num processo de decadência. Por exemplo: a existência do Quilombo dos Palmares e de toda a luta de Zumbi referem-se ao século XVI, e a Lei Áurea foi assinada no século XIX; ou seja, a Lei Áurea foi assinada por um processo de pressão social, logo, a lei é uma espécie/tentativa de dar formalidade a algo que já estava em derrocada.

Havia um enorme contingente de escravos e seus descendentes, e a Lei Áurea não trouxe uma solução para isso. Hoje, vivemos o reflexo dessa falha da Lei. E hoje ainda há muita gente que defende uma igualdade de condições que não existe.

Há muitos estudos internacionais que mostram que o racismo, o preconceito e a discriminação são determinantes para a pobreza entre os negros. É por isso que não há desenvolvimento econômico no Brasil, pois, se houvesse, seria pra todos. Isso é comprovado em todas as estatísticas nas áreas de educação, moradia, renda, onde o negro está numa condição de inferioridade. As mulheres negras são as que mais sofrem até hoje. Importante ressaltar que o escravo não era considerado cidadão, mas sim, subumano, ou seja, ele não tinha direito de ser humano. Ele era uma propriedade, vendido como se vende cavalo, boi, cabrito. Então, não há como pegar uma sociedade construída nesta estrutura constitucional e, no dia da Lei Áurea, dizer que, a partir daquele momento, estavam todos iguais, sem fazer nada para dar condições à moradia decente, à saúde, trabalho, renda.

Era pra ter feito um processo de reengenharia social, econômica, educativa e política pra que essas pessoas tivessem a mesma condição de ocupar espaços na sociedade que os brancos e a elite ocupam. Pra que elas tivessem a mesma condição de disputar, dentro de um mercado, tanto de trabalho, como educacional, e outras coisas.

E isso não aconteceu nem no século XIX. Só veio acontecer algumas políticas, o que nós chamamos de políticas de ação afirmativa e de combate ao racismo e todas as formas de intolerância, a partir de 2002. Antes disso, não havia nenhuma estrutura institucional no Brasil voltada para tratar essas questões com profundidade. Eu não estou querendo dizer com isso que, de 2002 pra cá, isso foi resolvido. Não foi. Muitos lugares, isso avançou muito, como é o caso do Governo da Bahia que, no governo de 2007 até 2014, principalmente, mas também de 2014 até agora, mas fundamentalmente no período de Wagner, foram implantados as mais importantes estruturas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo que existem no Brasil. Não é só na Bahia, não. Não tem nenhum lugar no Brasil que tenha uma estrutura institucional, um arranjo normativo tão bom quanto o da Bahia. Se esse arranjo normativo, institucional, está funcionando bem ou mal ou a 100% de possibilidade ou não, isso é uma outra discussão, está certo? Mas, do ponto de vista do arranjo institucional, é o mais aflorado arranjo institucional que existe no país hoje.

SJDHDS: A Bahia e o Brasil avançaram na construção de algumas legislações focadas nas questões raciais, a exemplo do Estatuto da Igualdade Racial, Lei de Cotas, entre outras. O que isso significa, de fato, para a temática da questão racial?

Elias Sampaio: Essas legislações significam a tentativa de criar o processo de reengenharia social, que mencionei antes, pra reverter as desvantagens que o povo negro viveu durante todo o período da escravidão, mas, principalmente, depois que terminou a escravidão no Brasil.

O Brasil precisa profundamente de políticas de ações afirmativas, de combate às discriminações, como o racismo e todas as formas de intolerância. O Estatuto da Igualdade Racial Nacional foi extremamente criticado, os ativistas e os militantes do Movimento Negro acharam que ele poderia ser melhor, mas não foi. Mas ele foi um marco, certo? Eu acho que, tanto o do Brasil quanto o da Bahia, já precisam de uma revisão para agregar coisas e qualificar outras coisas. No caso da Bahia, o Estatuto baiano ficou nove anos tramitando na Assembleia Legislativa e, apenas em 2014, foi que nós conseguimos transformá-lo em lei, que é a Lei 13.182/2014, que foi aprovada pela Assembleia, sancionada por Jaques Wagner, mas que foi fruto de um trabalho de muitos anos e de luta enorme do Movimento Negro e das entidades do movimento social como um todo.

Do ponto de vista normativo, nós temos, sim, uma legislação robusta. Mas nem tudo que a gente chama de “normatizado” – porque a lei existe -, chega na ponta. É preciso ter decretos, portarias, legislações internas específicas de cada órgão; precisa de regulamentação e isso eu acho que nós estamos em falta.

O Brasil está passando por um processo de crise, desde 2013, mais profundamente, e durante esse período todo muitas coisas mudaram e muitas coisas precisam ser reestruturadas ou corrigidas porque elas acabam, com o tempo, perdendo a eficácia. A realidade do Brasil de 2014 não é a de agora, principalmente por causa da profunda crise política, institucional e econômica que nós participamos. Então, muitos dos conceitos, das ideias que estavam naquele Estatuto e nas legislações paralelas a eles, elas hoje, por exemplo, estão sofrendo ataques frontais de todas as áreas da sociedade. O que eu estou querendo dizer, em outras palavras, é que a energia que foi dada durante todos esses anos para fazer com que essas legislações fossem aprovadas, me parece que ela não está sendo a mesma energia de hoje para fazer com que esses dispositivos saiam efetivamente do papel. Então, se teve um esforço muito grande para criar um arranjo normativo, arranjo institucional, a implementação disso não está com a mesma força que foi para se criar isso. Isso eu acho que é o problema. Eu acho que isso faz parte do conjunto da crise que nós estamos passando, mas é de fundamental importância que a gente atente pra isso.

Então, o que eu dizia sobre os arranjos normativos, é que eles foram um grande marco, sim, foram importantes e foram muito bem feitos até onde eu entendo, mas eles precisam ter consequência prática. Se não tiverem consequência prática, eles perdem o sentido. E nesse aspecto, o poder público, os governos e os órgãos de Estado têm uma responsabilidade muito grande, porque os movimentos sociais e o Movimento Negro, em particular, têm limites. Se, por acaso, as estruturas governamentais, que têm mais poder, estão começando a não valorizar tudo o que elas mesmas fizeram e fazem, apenas como diz no jargão: “para inglês ver”, isso também precisa ser observado. Eu acho que é por aí.

SJDHDS: Para encerrar, o que a questão negra e a luta antirracista significam para o desenvolvimento do Brasil hoje?

Elias Sampaio: Ela é fundamental. O Brasil só é um país ainda subdesenvolvido porque ele não resolveu a questão dos negros, homens e mulheres. O Brasil nunca vai ser um país desenvolvido se ele não transformar sua sociedade, a sua economia, as suas instituições em estruturas igualitárias, que deem igualdade de oportunidade a todos. Por exemplo, vou ser bem direito: se você retirasse todo o povo negro do Brasil hoje, o Brasil seria um país desenvolvido, você sabe por que? Porque a riqueza, a educação, a propriedade do patrimônio, as melhores condições de vida estão fundamentalmente na mão dos brancos. Se você fizesse o contrário, se tirasse do Brasil todos os brancos, com suas respectivas posses, seus respectivos bens, seus respectivos ativos, o Brasil teria uma renda igual aos países da África, países pobres da África. Entende o que eu estou dizendo? Então essa questão tem que ser resolvida, e esse não é um problema só dos negros; esse é um problema da sociedade brasileira.

A sociedade brasileira tem que, primeiro, admitir de forma assertiva e de forma consciente, de forma honesta, de que é necessário reverter o processo de desenvolvimento brasileiro, e o processo de desenvolvimento brasileiro – e aí eu estou falando de desenvolvimento, não estou falando de crescimento econômico. O Brasil é a 8ª ou 9ª economia do mundo, então é um país extremamente rico, mas ele é profundamente desigual e racista, preconceituoso e discriminatório. Se o Brasil não resolver a questão do racismo, do preconceito e da discriminação, principalmente em relação aos homens e mulheres negros, nós não vamos chegar a ser um país desenvolvido.

Foto tirada durante ação da VIII Edição do Novembro Negro Azeviche (2018)

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