sexta-feira, 29 março, 2024

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Bolsonaro vive “alucinado nas trevas”, afirma autor do impeachment de Dilma

Um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o jurista Miguel Reale Júnior não se arrepende da iniciativa que resultou no afastamento da petista em 2016, mas reconhece que os desdobramentos políticos dos últimos anos não tiraram o país da crise.

Em sua opinião, o ex-presidente Michel Temer (MDB) se deixou dominar pela corrupção e o presidente Jair Bolsonaro (PSL) vive um “processo alucinatório” e coloca a democracia brasileira em risco.

Para Reale Júnior, o governo Bolsonaro vem atacando “todas as classes que representam uma capacidade crítica”. O jurista chama isto de “fascismo cultural” “O fascismo cultural corta pela rama toda a capacidade de pensamento, de crítica, de divergência. A diversidade desaparece. O lema é este: é proibido pensar, mas é permitido obedecer”, afirma o jurista, que é professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e ocupou o cargo de ministro da Justiça durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

“Quem para e medita minimamente tem de ficar de olhos abertos para que não haja essa avalanche de destruição do pensamento”, comenta Reale Júnior, preocupado com os cortes em conselhos participativos de órgãos do governo federal.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista do jurista em que ele comenta a ligação de Bolsonaro com a ditadura militar (1964-1985) e a situação da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), outra autora do pedido de impeachment de Dilma.

UOL – Nas últimas semanas, o presidente Jair Bolsonaro tem voltado a falar sobre vítimas da ditadura, como a jornalista Miriam Leitão e o pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz. Por que, na sua opinião, o presidente volta a tocar nestas feridas do passado?

Miguel Reale Júnior – Pela própria personalidade dele, que se tem notado desde a época em que era deputado, quando defendeu que se fechasse o Congresso, que deviam matar [o ex-presidente] Fernando Henrique. É de uma litigiosidade exacerbada, sempre [busca] o confronto. Sempre volta ao passado e [faz] uma reconstrução do conflito que se estabeleceu na época da ditadura. Essas manifestações você pode colher ao longo dos 28 anos de um mandato absolutamente medíocre na Câmara dos Deputados que se pautou por agressões contínuas aos direitos humanos.

Quando [Bolsonaro] vota a favor do impeachment e oferece o voto à memória do coronel [Brilhante] Ustra [apontado como um dos maiores torturadores da ditadura]… Na primeira sessão que houve no Senado, logo em seguida, a minha manifestação inicial foi de solidariedade às vítimas do Ustra, dizendo que eu rejeitava que o impeachment servisse para que um torturador fosse homenageado.

Já percebia ao longo do tempo que essa belicosidade é da sua natureza. Ele não consegue sair da dicotomia, do maniqueísmo. É da natureza dele estabelecer continuamente o confronto, e não a união, não a harmonia, o apaziguamento dos espíritos. Ele precisa do confronto. Fora do confronto, ele não sabe viver.

Cabia algum tipo de punição a ele no momento em que homenageou Ustra na votação do impeachment?

Até houve uma representação [contra ele na Câmara]. Fui presidente da comissão de Mortos e Desaparecidos durante seis anos, [e] o rol de depoimentos que foram colhidos sobre as torturas no Doi-Codi [órgão de repressão que funcionava em São Paulo durante a ditadura] são impressionantes. Era um filme de terror. Como um deputado faz elogio ao torturador? No programa “Roda Viva” [da TV Cultura de São Paulo], perguntaram a ele qual era seu livro de cabeceira, e ele mencionou o livro do Ustra. Então, o habitat dele é este, o habitat horrendo do mundo das trevas, do mundo da morte, da tortura, da perseguição. É o universo dele. Ele não foge disso. É um universo muito pobre e muito restrito.

Que perigos o Brasil corre com um presidente que vive nesse habitat?

Ele [Bolsonaro] visa desconstituir a sociedade civil. O grande desafio da democracia a partir do último quartel do século 20 foi transformar a democracia representativa numa democracia participativa através da colaboração, espontânea ou solicitada, de associações de classe, organizações não-governamentais, entidades comunitárias, para que tragam sua contribuição no processo decisório da administração pública.

É abrir o Estado para a participação da sociedade, fazer com que cada vez mais pessoas participem da fixação do destino coletivo. Isso se faz através dos conselhos que são criados nos diversos órgãos da administração como auxiliares apresentando sugestões, dando material para a decisão mais correta da administração. Qual foi o primeiro ato do Bolsonaro quando assumiu? Foi eliminar os conselhos.

Ele quer estabelecer uma democracia direta via virtual, uma relação entre ele e a população através dos 140 toques do Twitter, sem reflexão, sem pensamento, e elimina os conselhos.

Nessa semana, ele modificou a composição do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) e eliminou a participação dos médicos. Ele vai desfazendo, vai desconstituindo a sociedade civil.

Ele propõe uma emenda constitucional que determina que não é mais necessário a inscrição em órgãos de classe para o exercício profissional. O médico não precisa estar inscrito no conselho [da categoria]. Com isso ele fragiliza os órgãos de representação da sociedade.

Não sei se isso é pensado ou se vem do seu ímpeto, mas é um processo por via do qual se fragiliza a sociedade civil, se faz terra arrasada da democracia participativa para se estabelecer um neopopulismo virtual de ligação direta entre a figura do “mito” e aqueles desconhecidos das redes sociais. Chamo isso de fascismo cultural.

Fascismo cultural remete um pouco ao termo “marxismo cultural” disseminado, em sentido oposto, por Olavo de Carvalho [escritor apontado como guru da família Bolsonaro].

Exatamente. O fascismo cultural corta pela rama toda a capacidade de pensamento, de crítica, de divergência. A diversidade desaparece. O lema é este: é proibido pensar, mas é permitido obedecer.

O sr. vê a democracia brasileira em risco?

Acho que sim, se não dermos um basta a esse processo de minimização da sociedade civil e da massa crítica que compõe o pensamento, a sensibilidade da vida brasileira.

O sr. vê sinais de que a sociedade pode vir a dar um basta nisso?

Não.

Eu sou anti-PT, mas não quer dizer que eu seja a favor disso [o governo Bolsonaro]. Pelo contrário. A elite pensante brasileira, quem para e medita minimamente, tem de ficar de olhos abertos para que não haja essa avalanche de destruição do pensamento. O presidente desconsiderou o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) exatamente na semana em que o Inpe recebeu o maior prêmio de todos da Sociedade Meteorológica Internacional, dizendo que o Inpe está a serviço de uma ONG. É um menosprezo contínuo [do presidente] à inteligência.

O sr. disse em entrevista à rádio Guaíba que Bolsonaro não é caso de impeachment, mas de interdição. Pode explicar melhor esta avaliação?

É porque é um processo tão alucinatório. Ele prejudica a si próprio a cada declaração. Lógico que beira o problema do decoro, mas é uma afronta tamanha à dignidade humana o que ele falou sobre o presidente da OAB.

O culto aos mortos e aos despojos vem desde os primórdios da humanidade. Dizer isso é, como diz o presidente da Ordem, uma crueldade, é uma malvadeza. Isso demonstra uma deturpação de sensibilidade. A frase [dita à rádio] valeu muito mais como expressão do que como realidade médica. Mas é de se espantar como alguém [como Bolsonaro] gosta desse mundo obscuro.

O sr. citou a retirada dos médicos do Conad e as críticas ao Inpe. Há também um ataque à ciência, na visão do senhor?

Sim, ataque à ciência, ataque à academia, ataque aos advogados, a todas as classes que representam uma capacidade crítica, uma capacidade de pensamento, e a diversidade.

Realmente [é] a tentativa de imposição de comportamentos e valores muito toscos, de um conservadorismo tosco, que ele entende que está legitimado porque foi eleito.

O que sr. espera dos próximos meses? Há alguém no governo capaz de moderar esse tom do presidente?   

Acho que não porque até agora todos que tentaram fazer alguma coisa foram defenestrados. Todos que tentaram algum movimento de contenção dessa avalanche de irracionalismo foram postos para fora. Não tenho visto autoridade no círculo presidencial para conter esse ímpeto, infelizmente.

Seria de se esperar que o ministro da Justiça, Sergio Moro, pudesse ser uma voz de contenção?

Acho que sim. Ele teria autoridade para fazer isso. Ele é o ministro da Justiça, o governo tem que se relacionar com os advogados. Qual é a posição do ministro da Justiça sobre o que o presidente falou para o presidente da Ordem? Seria interessante saber.

O sr. foi um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Passados mais de três anos daquele processo, como avalia os desdobramentos políticos e a situação atual do país?

Houve esse interregno do governo Michel Temer [2016-2018], que infelizmente se deixou dominar pelos quadros de corrupção do MDB e, com isso, não tivemos um processo como o que ocorreu quando houve o governo Itamar Franco [1992-1994] sucedendo o impeachment do [Fernando] Collor.

O governo Michel Temer fez propostas importantes de recuperação econômica, mas se deixou perder pela corrupção, pelo envolvimento dos seus principais ministros que hoje estão presos ou sendo processados, e comprometeu. Infelizmente, o presidente Temer não governou voltado para a nação. Ele fez algumas propostas importantes, mas sempre voltado só para o Congresso.

E ao mesmo tempo, por outro lado, houve a contaminação de todos os principais partidos políticos, o PT, o PSDB. O comprometimento moral fez com que a política fosse reduzida a uma visão absolutamente negativa. Isso favoreceu o surgimento dessa figura carismática de pouca ilustração [Bolsonaro] que vive do confronto. Um ano atrás, dei uma entrevista à [rádio] Jovem Pan dizendo “quem é democrata não vota em Bolsonaro”. E até escrevi um artigo em maio do ano passado com o título “A volta da ditadura pelo voto”, fazendo uma recuperação das manifestações do Bolsonaro ao longo dos seus vinte e tantos anos de mandato parlamentar.

A elite brasileira tem que se conscientizar de que ela tem uma responsabilidade de dar respostas consistentes a essa avalanche de ignorância.

Nas eleições de 2018, emergiram figuras novas na política como a professora Janaina Paschoal, autora com o sr. do pedido de impeachment de Dilma e hoje deputada estadual em São Paulo pelo PSL. Como avalia a situação de Janaina?

Tive até de certa forma um desentendimento pelo apoio que ela deu a Bolsonaro. Ela está hoje, sem dúvida nenhuma, mostrando os erros do presidente, numa situação um pouco constrangedora porque ela é do partido do presidente. Mas realmente não temos ninguém que fale no Congresso, não temos ninguém que fale pelos partidos. Há um vazio político. No entanto, uma figura como o [o governador João] Doria [PSDB] tem se ressaltado pela gestão e pela declaração que ele fez ontem contrapondo-se ao presidente da República na sua manifestação sobre o presidente da Ordem.

O sr. revisou sua posição sobre o impeachment de Dilma ou se mantém favorável ao afastamento dela?

Estamos vivendo até hoje a crise no Brasil, com milhões de desempregados, pela irresponsabilidade da conduta da presidente Dilma com relação às contas públicas e com relação à corrupção. Deram guarida à corrupção e deram guarida à maior irresponsabilidade possível na condução da economia brasileira. E estamos pagando esse preço com uma recessão que se prolonga. Isso é fruto do governo Dilma Rousseff. Então era necessário [o impeachment].

E o governo Michel Temer, de certa forma, paralisou o processo inflacionário e ao mesmo tempo recomeçou um processo de atividade econômica pequeno. O que aconteceu depois não cabia dentro do projeto do impeachment.  O impeachment era para eliminar aquele campo [do PT], e isto foi feito. Depois, infelizmente, Michel Temer não soube levar a bom termo a tarefa de conduzir o país. Conduziu no âmbito econômico parcialmente, mas no âmbito político foi um desastre.

Durante o governo Temer, discutiu-se a possibilidade de afastamento dele e agora se fala numa eventual quebra de decoro por parte do presidente Bolsonaro…

É um impasse imenso do presidencialismo. A fonte sem dúvida nenhuma está no sistema desse presidencialismo que foi imposto na Constituição de 1988. A Assembleia Constituinte era parlamentarista. Por imposição de [José] Sarney [presidente entre 1985 e 1990], ela virou, na última hora, presidencialista. E o presidencialismo tem gerado crises uma em cima da outra.

O sr. defende o parlamentarismo?

Sou favorável a um semipresidencialismo, a um semiparlamentarismo como forma de dar consistência política e ao mesmo tempo ter remédios mais suaves para crises como essa que estamos vivendo.

Bolsonaro corre o risco de enfrentar um processo de impeachment por causa das declarações que ele tem dado?

Acredito que não tem condições políticas, como durante muito tempo não havia condições políticas para o impeachment de Dilma. As afrontas que ele pratica podem beirar a falta de decoro, mas ficam numa zona fronteiriça entre a infração política e a infração moral.

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